sábado, 7 de agosto de 2010

Canção na plenitude





Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)

O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força — que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés — mesmo se fogem — retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.


(Lya Luft)



sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Erótica é a Alma





"Não foi à toa que Adélia Prado disse que "erótica é a alma". Enganam-se aqueles que pensam que erótico é o corpo.
O corpo só é erótico pelos mundos que andam nele.
A erótica não caminha segundo as direções
da carne.
Ela vive nos interstícios das palavras.
Não existe amor que resista a um corpo vazio de fantasias.

Um corpo vazio de fantasias é um instrumento mudo,
do qual não sai melodia alguma."


(Rubem Alves)

*

Erótica é a Alma
(Adélia Prado)


Pernas entrelaçadas
as minhas, as tuas
sem saber de quem são.
as mãos!

língua aventureira
desvenda meus sonhos
molha minha pele
Tesão!

jogado na cama
passeio em teu corpo
como tua carne
em ritual
Oração!

Eros nos move
Baco nos guia
ao prazer sem pressa
até que eu morra em teus braços
renasça em tua boca.
Para que morras em meu corpo
e renasças
dentro de mim.



quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Eu te amo, homem...






Eu te amo, homem, hoje como toda vida quis e não sabia, eu que já amava de extremoso amor o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos de bordado, onde tem o desenho cômico de um peixe — os lábios carnudos como os de uma negra.

Divago, quando o que quero é só dizer te amo.

Teço as curvas, as mistas e as quebradas, industriosa como abelha, alegrinha como florinha amarela, desejando as finuras, violoncelo, violino, menestrel e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito pra escutar o que bate.
Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo sua matéria, fauna e flora, seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios de tua barba.

Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:

"Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros".

Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.

Te alinho junto das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece, tira de mim o ar desnudo, me faz bonita de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega, me dá um filho, comida, enche minhas mãos.

Eu te amo, homem, exatamente como amo o que acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.

Assim, te amo do modo mais natural, vero-romântico, homem meu, particular homem universal.

Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.

Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,a luz na cabeceira, o abajur de prata; como criada ama, vou te amar, o delicioso amor: com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso, me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles eu beijo.


(Adélia Prado)




Para que o encontro se prolongue







Para que o encontro se prolongue
na ausência do nosso cruzar
de dedos,
há uma celebração quotidiana
do teu nome fora da minha boca.
Chamo-te como se de perto
me ouvisses, é só um murmurar
fugidio para que aqui te quedes.




Lidia Martinez
foto: Elena Retfalvi