sábado, 18 de fevereiro de 2012

Clarice Lispector, Berna – Suiça, 1947

Heavens and Earth


"Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro...há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma em boi. Assim fiquei eu...Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse seu único meio de viver. Juro por Deus que, se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia ia ser punida e iria para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não é ser punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade da alma."


(Clarice Lispector, Berna – Suiça, 1947)


Foto: josefontheroad



sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Beijar o pão.

Potato Rosemary Bread - Kiss


Lá em casa nunca se jogava pão fora. Segundo minha avó, era pecado, pelos costumes trazidos de sua origem Italiana. O pão, guardava relação com o Sagrado.
Se ficava amanhecido, ela esquentava na chapa do fogão a lenha, para comermos com café.
Quando ficava duro, ah, tanta coisa tinha pra fazer com ele. Torrar no forno, e moer na máquina que também moía carne, e fazer farinha de rosca, pra empanar os bifes, como ela dizia.
Se a sobra de pão fosse grande, não tinha problema, ela fazia sua deliciosa receita de pudim de pão, com calda caramelizada coberta de fatias de banana. Hum... era de dar água na boca, quando a forma saía do forno, era só amornar e ela o virava em um prato de pudim, e lá estava ele: oferecido, confiante da provocação que causava nas papilas degustativas de toda família.
Havia uma sacola de algodão costurada por minha avó, nela estavam bordadas as palavras: "o pão é sagrado", ficava pendurada na parede em cima do fogão a lenha, e se por acaso algum pedaço fosse lá esquecido e chegasse a embolorar, aí não tinha jeito, tinha que jogar fora.
Ah, mas havia um ritual pra isso, que ninguém se atrevesse, a colocar no lixo, um pedaço de pão, sem beijar, é isso mesmo, tinha que levar até a boca e beijar.
Somente depois podia jogá-lo fora.
Assim mesmo minha avó nunca deixava de dizer: "que pecado, jogar fora um pedaço de pão. Pão é sagrado".
Nunca faltou na nossa mesa, em todas as refeições, um cesto de pão. Meus avós não sabiam almoçar ou jantar, sem uma fatia de pão.
Somente italianos pra comer, massa com pão, feijão e arroz com pão, risoto com pão.
Sinto falta da sacola bordada, pendurada sobre o fogão. Quase nem pão de padaria compro mais.
Tanto se fala hoje, no colesterol, triglicérides, diabetes, e coisa e tal, que o único pão que tem entrado em minha cozinha, é o integral. Que diga-se de passagem, tem gosto de palha de milho seca.
Mas, mesmo esse, quando embolora, ou vou dar um pedaço pro Marley, não esqueço de beijar.
Hábitos são hábitos, difícil desfazer-se deles, principalmente quando gostamos de tê-los, por trazerem lembranças de pessoas muito caras ao nosso coração.


(Lenapena)