sábado, 28 de novembro de 2009

Cansaço





O Que Há


"O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas
Essas e o que falta nelas eternamente ;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço..."

(Álvaro de Campos)




sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Nêmesis






Há nesse olhar translúcido e magnético
A mágica atração de um precipício;
Bem como no teu rir nervoso, cético,
As argentinas vibrações do vício

No andar, no gesto mórbido, esplinético,
Tens não sei que de nobre e de patrício,
E um som de voz metálico e frenético,
Como o tinir dos ferros de um suplício.

És o arcanjo funesto do pecado,
E de teu lábio morno, avermelhado,
Como um vampiro lúbrico, infernal,

Sugo o veneno amargo da ironia,
O satânico fel da hipocondria,
Numa volúpia estranha e sensual.

(Carvalho Júnior)




Comigo





"Comigo você
falará sua
alma toda ...
mesmo em silêncio."


(Clarice Lispector)






domingo, 22 de novembro de 2009

Back to the old house





" Neste momento de distâncias impensáveis e retornos confusos, cabe-me dizer, pelas belas palavras de Rui:

Back to the old house


Boy meets girl na biblioteca. Os teus olhos eram tão cúmplices, dir-se-ia que tínhamos escrito juntos todos esses livros.

Uma única tarde podia levar-nos
longe demais para os barcos, era fácil esquecer que lá fora havia apenas uma cidade pequena com o inverno nos vidros.

Os livros permanecem onde os abandonámos mas o tempo baralhou as pistas que nos guiavam nesse labirinto.

Lembrar-me de ti significa medir uma distância dentro de mim próprio.

Serve isto para dizer o quanto nos afastámos da casa velha onde era costume estar perto de ti dias inteiros."

(Rui Pires Cabral)




Catedral




O deserto
Que atravessei
Ninguém me viu passar
Estranha e só
Nem pude ver
Que o céu é maior
Tentei dizer mas vi você
Tão longe de chegar
Mais perto de algum lugar

É deserto
Onde eu te encontrei
Você me viu passar
Correndo só
Nem pude ver
Que o tempo é maior
Olhei pra mim
Me vi assim
Tão perto de chegar
Onde você não está
No silêncio uma catedral
Um templo em mim
Onde eu possa ser imortal
Mas vai existir
Eu sei
Vai ter que existir
Vai resistir nosso lugar
Solidão
Quem pode evitar
Te encontro enfim
Meu coração é secular
Sonha e deságua
Dentro de mim
Amanhã devagar
Me diz
Como voltar

Se eu disser
Que foi por amor
Não vou mentir pra mim
Se eu disser
Deixa pra depois
Não foi sempre assim
Tentei dizer
Mas vi você
Tão longe de chegar
Mais perto de algum lugar...
(Tanita Tikaran)





sábado, 21 de novembro de 2009

O que é ser louco?





"Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental. Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me explico":

Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles, Maiakovski. E logo me assustei. Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh matou-se. Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica. Maiakoviski suicidou-se.

Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos. Mas será que tinham saúde mental? Saúde mental, essa condição em que as idéias comportam-se bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado; nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a vela, basta fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme) ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, a coragem de pensar o que nunca pensou. Pensar é uma coisa muito perigosa... Não, saúde mental elas não tinham... Eram lúcidas demais para isso. Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idosos de gravata. Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental. Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse pedir emprego numa empresa.

Por outro lado, nunca ouvi falar de político que tivesse depressão. Andam sempre fortes em passarelas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas. Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos devidos esclarecimentos.

Nós somos muito parecidos com computadores. O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interação de duas partes. Uma delas chama-se hardware, literalmente "equipamento duro", e a outra denomina-se software, "equipamento macio". Hardware é constituído por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito. O software é constituído por entidades "espirituais" - símbolos que formam os programas e são gravados nos disquetes. Nós também temos um hardware e um software.

O hardware são os nervos do cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória. Do mesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo "espirituais", sendo que o programa mais importante é a linguagem.

Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no software. Nós também. Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis consertar o que se estragou. Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave de fenda. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos, podem entrar dentro dele. Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso dos símbolos eles podem vir de poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, pastores, amigos e até mesmo psicanalistas...

Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo, é sensível às coisas que o seu software produz. Pois não é isso que acontece conosco? Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos de Drummond e o corpo fica excitado. Imagine um aparelho de som. Imagine que o toca-discos e os acessórios, o hardware, tenham a capacidade de ouvir a música que ele toca e se comover. Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta e se arrebenta de emoção! Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei no princípio: A música que saía de seu software era tão bonita que seu hardware não suportou... Dados esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de oferecer uma receita que garantirá, àqueles que a seguirem à risca, "saúde mental" até o fim dos seus dias. Opte por um software modesto. Evite as coisas belas e comoventes. A beleza é perigosa para o hardware.

Cuidado com a música... Brahms, Mahler, Wagner, Bach são especialmente contra-indicados.
Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Tranquilize-se há uma vasta literatura especializada em impedir o pensamento. Se há livros do doutor Lair Ribeiro, por que se arriscar a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente. Como eles publicamdiariamente sempre a mesma coisa com nomes e caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas iguais. E, aos domingos, não se esqueça do Silvio Santos e do Gugu Liberato.

Seguindo essa receita você terá uma vida tranqüila, embora banal. Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E, em vezde ter o fim que tiveram as pessoas que mencionei, você se aposentará para, então, realizar os seus sonhos.

Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já terá se esquecido de como eles eram..."

(Rubem Alves - Escritor - Professor Emérito da Unicamp - Psicanalista
Sobre o tempo e a eternidade.)

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Incerteza



Apetece-me




Apetece-me fugir o mundo
,
Fingir que o real é miragem
E o nosso sonho é agora.
Apetece-me fundir-me em ti,
Mover o tempo ao contrário,
arrasta-lo quando corre
E apressa-lo quando se arrasta.
Apeteces-me....
Apetece-me o nosso abraço,
O calor do teu corpo,
O som da tua voz,
O ar que respiras.
Apetece-me...
O meu reflexo no teu olhar,
A tua boca na minha.
Apetecem-me...
Os risos,
As cumplicidades e sintonias.
Apeteces-me...




E que nada se perca infinitesimalmente.





"Vive o instante que passa. Vive-o intensamente até à última gota de sangue. É um instante banal, nada há nele que o distinga de mil outros instantes vividos. E no entanto ele é o único por ser irrepetível e isso o distingue de qualquer outro. Porque nunca mais ele será o mesmo nem tu que o estás vivendo. Absorve-o todo em ti, impregna-te dele e que ele não seja pois em vão no dar-se-te todo a ti. Olha o sol difícil entre as nuvens, respira à profundidade de ti, ouve o vento. Escuta as vozes longínquas de crianças, o ruído de um motor que passa na estrada, o silêncio que isso envolve e que fica. E pensa-te a ti que disso te apercebes, sê vivo aí, pensa-te vivo aí, sente-te aí. E que nada se perca infinitesimalmente no mundo que vives e na pessoa que és. Assim o dom estúpido e miraculoso da vida não será a estupidez maior de o não teres cumprido integralmente, de o teres desperdiçado numa vida que terá fim."

(Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente IV)



...Então ela pensou





"...Então ela pensou: Sou mais do que isso que vêem em mim. Mereço mais do que a atenção distraída, o gesto entediado, o olhar desatento. Nem eu mesma sabia, mas sou algo além desse vulto obscuro, essa criatura inaparente, resignada ou rancorosa, que permite ou cobra mais do que alguém lhe poderia dever. Eu sou o novelo das palavras não ditas que se condensou na treva onde me sinto sozinha. É dali que sobe esse vento e nasce esse palavreado incessante que não me deixa dormir; esse sopro de capim perfumado, esse farfalhar de passos que nunca chegam mas nunca se vão inteiramente, esse mar debaixo da sacada... e sua música me dá coragem de abrir os olhos cada manhã de cada dia em que eu tento ser com tanta aflição. E preciso de que alguém que me ame, entenda isso, descubra isso, aceite e ame também isso em mim. ...quando o outro entende que sou apenas uma pessoa, uma pessoa, uma pessoa."

(Lya Luft)




4º Motivo da Rosa





"Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verá, só de cinzas franzidas,
mortas, intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.
"

(Cecília Meirelles)



quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Quando em teu colo deitei a cabeça





"Quando em teu colo deitei a cabeça, minha camarada, a confissão que fiz eu reafirmo, o que eu te disse e a céu aberto eu reafirmo: sei bem que sou inquieto e deixo os outros também assim, eu sei que minhas palavras são armas carregadas de perigo e de morte, pois eu enfrento a paz e a segurança e as leis mais enraizadas para as desenraizar, e por me haverem todos rejeitado mais resoluto sou do que jamais poderia chegar a ser se todos me aceitassem, eu não respeito e nunca respeitei experiência, conveniência, nem maiorias, nem o ridículo, e a ameaça do que chamam de inferno para mim nada é, ou muito pouco, minha camarada querida: eu confesso que a incitei a ir em frente comigo e que ainda a incito sem a mínima idéia de qual venha a ser o nosso destino ou se vamos sair vitoriosos ou totalmente sufocados e vencidos."

(Walt Whitman)




quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Come to me





Come to me
while I'm sleeping,

so their wagging tongues

might not find you, my love!


All the while

they lie down,

our lighter souls fuse,

fly and dive, my love.


So, stamp this night so strong,

that I will remember
and have it ever after!


Come to me

in my dreaming,
so their wagging tongues
might not find you, my love!


'Round the corner,

back of hands,
they'll still be talking

whether or not we'd ever,

whether we'd ever, my love.

(Lyrics of Come to me by Vangelis)





sábado, 7 de novembro de 2009

O Avesso e o Direito




"Assim, cada artista conserva dentro de si uma fonte única, que alimenta durante a vida o que ele é e o que diz. Quando a fonte seca, vê-se, pouco a pouco, a obra encarquilhar-se e rachar. São as terras ingratas da arte, que a corrente invisível não mais irriga. Com o cabelo ralo e seco, o artista, barba escassa, está maduro para o silêncio ou para salões, o que vem a dar no mesmo. Nesse caso, sei que minha fonte está em O Avesso e o Direito, nesse mundo de pobreza e de luz em que vivi durante tanto tempo, e cuja lembrança me preserva, ainda, dos dois perigos contrários que ameaçam todo artista: o ressentimento e a satisfação. Para começar, a pobreza nunca foi uma desgraça para mim: a luz espalhava nela suas riquezas. Mesmo as minhas revoltas foram por ela iluminadas. Creio poder dizer, sem trapecear, que, quase sempre, foram revoltas para todos, para que a vida de todos se elevasse na luz. Não é certo que meu coração fosse naturalmente predisposto a esse tipo de amor. Mas as circunstâncias me ajudaram. Para corrigir uma indiferença natural, fui colocado a meio caminho entre a miséria e o sol. A miséria impediu-me de acreditar que tudo vai bem sob o sol e na história; o sol ensinou-me que a história não é tudo. Mudar a vida, sim, mas não o mundo do qual eu fazia minha divindade. Assim é, sem dúvida, que abordei essa carreira desconfortável em que me encontro, enfrentando com inocência uma corda bamba, na qual avanço com dificuldade, sem estar seguro de alcançar a outra ponta. Em outras palavras, tornei-me um artista, se é verdade que não há arte sem recusa nem consentimento." (Albert Camus)




quarta-feira, 4 de novembro de 2009

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Minha alma...





"Minha alma é uma orquestra oculta;
não sei que instrumentos
tangem e rangem,
cordas e harpas,
tímbales e tambores,
dentro de mim.
Só me conheço como sinfonia."

(Fernando Pessoa/Bernardo Soares - Livro do Desassossego)




Cada pessoa que encontro...







"Há dias em que cada pessoa que encontro, e, ainda mais, as pessoas habituais do meu convívio forçado e quotidiano, assumem aspectos de símbolos, e, ou isolados ou ligando-se, formam uma escrita poética ou oculta, descritiva em sombras da minha vida. O escritório torna-se-me uma página com palavras de gente; a rua é um livro; as palavras trocadas com os usuais, os desabituais que encontro, são dizeres para que me falta o dicionário mas não de todo o entendimento. Falam, exprimem, porém não é de si que falam, nem a si que exprimem; são palavras, disse, e não mostram, deixam transparecer. Mas, na minha visão crepuscular, só vagamente distingo o que essas vidraças súbitas, reveladas na superfície das coisas, admitem do interior que velam e revelam. Entendo sem conhecimento, como um cego a quem falem de cores." (Fernando Pessoa / Bernardo Soares - Livro do Desassossego)